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domingo, 30 de agosto de 2015

Oliver Sacks, autor de Despertares, adormeceu para sempre

Em Fevereiro, o célebre neurologista e escritor britânico anunciara nos media que estava a morrer. Eis um apanhado póstumo da vida multifacetada do médico que pôs a pessoa no centro da narrativa médica e explicou ao mundo as doenças mais paradoxais do cérebro humano.
Oliver Sacks tinha uma popularidade rara para um cientista JAMES LEYNSE/CORBIS
Oliver Sacks, professor de neurologia da Universidade de Nova Iorque, autor de best-sellers cheios daquilo a que ele chamava de “contos clínicos” – e que deram origem a filmes de Hollywood como Despertares (com Robert de Niro e Robin Williams) e À primeira vista (com Val Kilmer e Mira Sorvino) –, morreu este domingo de cancro ocular na sua casa em Nova Iorque. Tinha 82 anos de idade.
No seu último livro, uma autobiografia intitulada On the Move (“em movimento”, “em mudança”) e publicada uns meses antes da sua morte, Sacks revela partes pouco conhecidas da sua intensa história pessoal: foi motard e halterofilista, foi viciado em anfetaminas. Era um homossexual, que só agora, em tempos mais tolerantes, o assume publicamente – mas que praticava o celibato há 35 anos.
E não há muita margem para dúvidas: viveu cada momento dessa vida em cheio. Basta ler os inúmeros testemunhos e artigos de amigos e admiradores publicados na imprensa internacional nos últimos meses, na sequência da sua “morte anunciada”.
Daí que seja difícil abordar aqui todas as facetas e fases da vida deste médico, apaixonado de química e música, de física e de neurociências. Mas uma coisa é certa: o que o tornou mundialmente conhecido – e de facto, incontornável para milhões de leitores – foi esse cruzamento único que Sacks inventou entre a neurologia e a arte de contar, motivado pelo seu amor pelos seus doentes.

“Sacks contribuiu para humanizar uma série de estranhas perturbações neurológicas – e, em certa medida, tornou naturais bizarros sintomas tais com os tiques e os tremores dos doentes”, disse ao PÚBLICO por email o conhecido neurocientista português António Damásio. “Fez os leitores perceber que, por detrás da estranheza dessas manifestações, há também uma pessoa que pensa e que sente. Essa foi um feito notável, conseguido por Sacks ao longo de décadas de escrita incessante.”

Sacks escrevia com uma humanidade e uma empatia sem iguais (já para não falar da sua mestria literária e científica) sobre as patologias neurológicas mais bizarras. E tinha sempre coisas profundas e emocionantes a dizer sobre a luta dos doentes com as suas trágicas doenças, descrevendo como ninguém os mistérios do mais misterioso dos órgãos que é o cérebro humano.

A prova disso, a admiração que nutria por ele o poeta anglo-americano (e seu amigo) W.H. Auden (1907–1973). Ou a que tem hoje a escritora britânica Hillary Mantel (autora, entre outros, do aclamado romance Wolf Hall), que declarava, num curto texto em 2013 no jornal The Guardian, que Sacks era o seu herói e que ele tinha “elevado a história clínica ao patamar da literatura”, acrescentando que “[Sacks] nunca faz o leitor sentir-se um voyeur; a sua abordagem é subtil, e o que emerge de todo o seu trabalho é o seu respeito pelos seus sujeitos. Parece amar os seres humanos (…). Não ama a humanidade em abstracto, mas admira e aprende com cada indivíduo, não importa o quão devastado [pela doença]”.

De Londres para Nova Iorque
Nascido em Londres em 1933, numa família de médicos e cientistas, Sacks estudou medicina na Universidade de Oxford e a seguir emigrou para os EUA, onde fez o internato em São Francisco e Los Angeles, lê-se na curta biografia no seu site oficial (http://www.oliversacks.com/). E a partir de 1965, passou a residir e a exercer a neurologia em Nova Iorque, dedicando-se a tratar pessoas com doenças neurológicas literalmente fora deste mundo (não é por acaso que intitularia, mais tarde, um dos seus grandes livros de contos clínicos Um Antropólogo em Marte).

Foi em 1973 que publicou Despertares, o seu segundo livro, que mais tarde daria lugar ao filme com o mesmo nome, com Robin Williams no papel de Sacks. Mas a sua “saga” com o grupo de doentes descritos no livro, “congelados no tempo” desde os anos 1920 devido a uma misteriosa epidemia de “encefalite letárgica” e esquecidos num hospício do Bronx, começara pouco depois da sua chegada à Big Apple. Sacks fê-los literalmente acordar, quatro décadas depois, quando teve a ideia de lhes administrar um então novo medicamento contra a doença de Parkinson, a L-Dopa.

Todavia, o que celebrizou Sacks – na medicina e na escrita – foi a sua primeira recolha de “contos clínicos” propriamente ditos, O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu, publicada em 1985. A história que dá título a esta antologia não podia deixar ninguém indiferente: era a de um homem que sofria de “prosopagnosia” (como aliás o próprio Sacks), uma doença rara que torna a pessoa incapaz de distinguir os rostos humanos entre si apesar de ter uma visão e um processamento pelo cérebro da informação visual totalmente normais. O encenador de teatro britânico Peter Brook criaria nos anos 1990, em Paris, o espectáculo L’Homme qui (O homem que), com base nesses contos de Sacks.

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