Hoje às 06h15
* Wanderley de Souza, professor titular da UFRJ, é membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Nacional de Medicina.
Há uma surpresa geral com o amplo movimento que, de forma crescente, vem ocupando espaço nas cidades de grande e de médio porte do país. A princípio, o movimento colocou como ponto focal a questão do reajuste das passagens urbanas, sempre com justificativas pouco convincentes, das autoridades estaduais e municipais. Logo, ficou claro que esta era apenas a gota d'água. Afinal, pressionadas pelo apoio popular alcançado rapidamente pelo movimento, nossas autoridades estão revogando o aumento, usando o argumento de sempre de que vão fazer "cortes em investimentos importantes".
Não entenderam o espírito do movimento, que esperava redução, mas com diminuição nos lucros excessivos obtidos pelos donos das empresas, com "capitanias hereditárias e reservas de mercado, fruto de acordos políticos". Para melhor entender o real sentido do movimento é fundamental ouvir as pessoas que dele participam ativamente, simplisticamente chamado de Movimento do Passe Livre (MPL). Esta designação está longe de representar a inquietude, ou mesmo a indignação, que aflora rapidamente em uma simples conversa com alguns grupos de estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Os estudantes, de forma entusiástica, faltam às aulas para irem às ruas manifestar, até certo ponto de forma lúdica, o descontentamento acumulado por muitos motivos. Um grupo, mais ligado à área médica, protesta contra o abandono dos hospitais universitários do Rio de Janeiro, todos com infraestrutura física decadente, equipamentos defasados e falta de materiais básicos afetando, por um lado, a atenção digna aos pacientes e, por outro, à adequada formação dos novos profissionais que atuam na área da saúde. Avançam em críticas sobre como o poder público deixou de construir hospitais decentes, substituindo-os por caixotes improvisados.
No entanto, não faltam recursos para a construção de estádios caríssimos e de qualidade questionável, haja vista o que se passa com o Engenhão. Criticam, ainda, a opção feita de se construir a Transcarioca, que atravessa o campus do Fundão, para operar com ônibus, ao invés de trens ("influência do poderoso lobby do transporte rodoviário?"). Acresce, ainda, a opção de destruir o elevado da perimetral, pondo abaixo milhares de toneladas de concreto e de dinheiro público investido na sua construção. Parece coisa de país muito rico, onde não falta mais nada e está sobrando dinheiro.
Com o agravante de que o povo que paga não é consultado. É o "estado da farra com dinheiro público", no dizer de um dos estudantes. "O importante é ter obras, não por sua importância para a sociedade, mas como fonte de recursos oriundos das empreiteiras para as campanhas políticas ou mesmo o enriquecimento pessoal". Já outro grupo, ligado à área tecnológica, reclama da não conclusão do prédio do Instituto de Física da UFRJ e das dificuldades de se conseguirem recursos para a construção de um novo sincrotron em Campinas, equipamento importante para grupos de pesquisa de várias áreas de todo o país.
Qual o volume de recursos necessários para estas inciativas na área da ciência? A resposta vem com uma nova unidade comparativa: "O custo de meio Maracanã (equivalente, no momento, a 600 milhões de reais. No momento, pois, este valor pode mudar, mas sempre para mais)". Concluí que os jovens mais esclarecidos estão indignados com muita coisa. Reclamam da não representatividade dos partidos políticos, dos sindicatos, das associações, incluindo a tradicional União Nacional dos Estudantes (UNE), "tudo fruto da politicagem e do compadrio, corrompidos tanto pelas empreiteiras como pelo próprio governo, obedecendo a diretrizes oriundas de grupos que querem se manter no poder".
Políticos (aqui com p minúsculo) profissionais ocupando posições chave nos vários poderes da República, "mas sem currículo ou mesmo com extensa folha corrida e que deveriam estar na cadeia". Por isto não querem em suas manifestações a presença destes "setores organizados à custa da corrupção". Confesso que concordo com quase tudo do que ouvi dos estudantes. Espero que a inquietude natural da juventude continue e que tenha consequências práticas. Volto a ter lembranças de 1968, quando, como frequentador assíduo do Calabouço, participei de passeatas onde lutávamos contra um Estado repressor e autoritário.
Hoje, em pleno Estado democrático, a luta da juventude é pela decência, pela defesa do uso dos recursos públicos para projetos discutidos com a sociedade, contra a corrupção endêmica e "outras coisitas mais". Que sejam persistentes na luta e que tenham sucesso.
* Wanderley de Souza, professor titular da UFRJ, é membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Nacional de Medicina.
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